O dia em que fui o primeiro.

Eu nunca fui bom em futebol. Nunca. Minha falta de aptidão ao esporte bretão se espelhava na minha posição – sempre me voluntariava a ir pro gol, uma vez que lá o time não dependeria tanto do meu talento com a bola nos pés. Talento esse que, bom, não existia. Estando no gol eu oferecia alguma resistência, afinal segundo conceitos da física, onde eu estava a bola não poderia estar. Estar parado no meio do gol era uma contribuição maior do que eu jogando na linha.

Quando não era goleiro, era zagueiro. Ou o equivalente a “cara que fica perto do gol pra atrapalhar o time adversário” do futsal, uma vez que nunca joguei futebol de campo na vida. Eu tenho o preparo físico de uma minhoca que acabou de acordar de um coma de vinte anos. Tomo dois impulsos pra levantar da cama. Lateral eu não poderia ser.

Um, dois, três e.... hunf. De novo: um, dois três e...
Um, dois, três e…. hunf. De novo: um, dois três e…

Na zaga, eu sempre adotava a política do carrapato. Onde o melhor cara do time vai, eu vou. Se ele ataca, eu estava lá. Se ele defende, eu estava lá. Se ele decide tomar um banho quente depois do jogo e precisa de alguém pra esfregar suas costas, eu estarei lá. Eu apenas sigo as ordens do professor.

Mas eu também era abusado. Quando o time estava no contra ataque, eu disparava pra frente só pra dizer que estava ajudando. Se a bola acabava no meu pé, eu poderia fazer o que quisesse: chutar pra fora, cruzar errado, perder a bola, tropeçar em mim mesmo. Afinal de contas, era um zagueiro no ataque. Qualquer coisa que fizesse já seria mais do que minha obrigação. Sou pago pra marcar o atacante.

Inteligente como sou, já usava isso como desculpa. O time contra-atacava, perdia a bola e dava origem a um contra-ataque inimigo, que quase sempre resultava em gol – afinal eles não tinham um zagueiro atacante. Seu zagueiro zagueiro estava atacando, ao invés de marcar o atacante atacante. Minha estratégia era sair correndo desenfreadamente do ataque até meu gol, mostrando ao time que pelo menos vontade eu tinha. Capacidade, nem tanto.

- pô galera eu cruzei o campo inteiro pra voltar :( -- FODA-SE VOCÊ NÃO DEVIA ESTAR LÁ
– pô galera eu cruzei o campo inteiro pra voltar 😦 — FODA-SE, VOCÊ NÃO DEVIA ESTAR LÁ

Isso praticamente resume minha carreira no futebol. Exceto por um breve período na quarta série. Naquele tempo eu era bola de ouro.

A educação física era sagrada: toda última hora de aula da quarta-feira era destinada à educação física, que, pra crianças de dez anos, era dizer: “seguinte, eu cansei de dar aula, toma aqui uma bola pra vocês se matarem nessa quadra quente como magma e áspera como a barba do caminhoneiro que namorei na década de 70”.

Sério, vocês não tem ideia de como aquela quadra era imprópria pra qualquer esporte. A não ser que o esporte envolva uma quadra feita de lixa, exposta ao sol sertanezino das duas da tarde, um depósito de cadeiras quebradas no canto da quadra e umas trinta crianças se batendo atrás de uma bola muito pouco preparada para rolar.

Dizem que essa aí é a definição do esporte nacional da Guatemala.

Muitos de nós jogávamos descalços, e na maioria das vezes nem bola tinha. Valia latinha de refrigerante, garrafinhas plásticas (a famosa Pitchulinha) ou qualquer objeto capaz de desempenhar movimento. Se dava pra chutar, era bola. E aquele era nosso Maracanã.

Lembrando que eu não recomendo chutar gordinhos. Não mesmo.
Lembrando que eu não recomendo chutar gordinhos. Não mesmo.

A cena naquela quarta era a mesma: os times eram tirados no par-ou-ímpar e eu era um dos últimos a serem escolhidos. Já tava acostumado, nada demais. Bola em jogo.

Todo mundo sabe que quando criança joga bola, não tem posição. Não tem lateral cobrindo subida de volante. Não tem terceiro zagueiro, libero, segundo volante, nada disso. Só tem uma onda disforme formada por crianças brigando por poucos segundos de domínio da redonda. Segundos de ouro.

Uns se destacam. Sempre assim. Geralmente eles eram os responsáveis por formar o time. Os dois melhores jogadores escolhiam o time. Evitar dois caras bons no mesmo time era uma das primeiras lições de equilíbrio que aprenderíamos na vida. Balanço estequiométrico na quarta série.

A rivalidade entre os times, mesmo que nunca fossem o mesmo, era tanta que no outro dia o time perdedor sempre chegava envergonhado. Sua honra ficaria em cheque até a próxima quarta-feira.

Numa dessas quartas, aconteceu algo diferente. Eu, goleiro da vez, via aquela bagunça de longe. Todo mundo no meio de campo, tirando os goleiros. Bolas chutadas, canelas chutadas, até a mãe de alguém seria chutada se estivesse ali no meio. Até que Thiago, um dos caras bons, escapou daquele buraco negro.

Entre ele e o gol, eu. Dada a imensa diferença de habilidade entre nós dois, era praticamente certo que ele marcaria aquele gol. Aliás, seria um puta golaço, afinal Thiago havia driblado não só todos os jogadores do meu time, mas os do time dele também e, se não me engano, driblou uma família de turistas japoneses que passavam por ali. A gente nunca ouviria o fim da zoação se ele marcasse aquele gol.

Entre ele e o gol, alguns metros. Distância suficiente pra todos os jogadores do meu time simplesmente desistirem de correr. A descrença deles em mim era tão grande que não compensava suar aqueles metros a mais só para, no fim, buscar a bola e ouvir a comemoração alheia mais de perto.

Essa é uma das memórias mais intensas que tenho da infância. Mãos rígidas, joelhos flexionados. Tudo o que aprendi nesses programas esportivos de domingo a tarde que ninguém assiste. Eu, do alto do meu corpinho roliço, estava pronto.

Thiago deu mais alguns passos com a bola. Chutou forte, meia altura, canto esquerdo. Meu lado ruim, longe demais pra pegar. Todo mundo ali na quadra já sabia que seria gol. Tenho certeza que já tinha alguém virando o placar.

--- PORRQUE PRRA MIM É ASSIM QUE TEM QUE BATER, FORTE E NO ÂNGULO
— PORRQUE PRRA MIM É ASSIM QUE TEM QUE BATER, FORTE E NO ÂNGULO

Nesse momento, eu pensei “Hoje não“. Saltei. Braços esticados, olhos fechados. Encostei naquela bola com a ponta dos dedos. Caí no chão como uma torta virada pra baixo, uniforme já rasgado, pensando “eu fiz isso mesmo? Eu peguei aquela bola?“.

Na minha cabeça, o salto demorou um século. Os três, quatro metros do gol se tornaram quilômetros. Da hora que pulei até o momento que toquei o chão com a energia cinética de dez bombas nucleares, eu poderia ter cantado uma canção.

Daria tempo de cantar Faroeste Caboclo durante o salto e ainda não chegaria ao chão.
Não tinha medo tal João do Santo Cristo, era o que todos diziam…

Ouvi gritaria. Ainda jogado no chão, imaginei que seria o time comemorando o gol antológico marcado por Thiago. Nem Pelé havia feito um gol daqueles na quadra do Anacleto Cruz. Talvez porque Pelé nunca tenha pisado ali, mas não tira o mérito do moleque.

A gritaria foi chegando mais perto. “Eles vão comemorar em cima da gente.”. Pouco depois, senti um peso em mim. “Seria esse o peso do fracasso?”, filosofei. Era como se um dinossauro tivesse me escolhido como penico e despejado toneladas de cocô pré histórico em cima de mim. Sensação comum, quem nunca?

Acontece que eu tinha pego aquela bola. O pequeno toque que dei nela, em meio ao vôo mais longo da minha vida, foi o suficiente pra impedir o gol e jogar a bola para escanteio.

Eles não estavam me zoando. Estavam me celebrando. Naquele momento, deixei de ser o cone no gol pra ser o goleiro que tinha pegado aquela bola.

eu devia ter comemorado assim
eu devia ter comemorado assim

Não que tenha sido um ato heróico, mas foi algo a ser louvado. Não era comum, pelo menos entre nós, um goleiro se jogar e se ralar inteiro pra salvar uma bola. Eu literalmente dei o sangue por aquela bola. O sangue e o uniforme. Foda-se, virei herói.

O jogo acabou pouco depois, afinal tínhamos muito pouco tempo pra jogar. Durante o resto da semana, nas outras peladas que jogávamos nós recreios, eu continuava no gol. Chega a imundo na sala. Valia a pena.

O melhor aconteceu na quarta-feira seguinte. Lembra que eu disse que eram os melhores jogadores que tiraram os times? Pediram pra que eu e Thiago escolhêssemos.

Curiosamente, naquele jogo eu não fiquei no gol. Portando minha camisa 10 (falsificada) do Corinthians de 98, joguei na linha. O zagueiro deles ficava na minha cola. Se eu atacava, ele estava lá. Se eu defendia, ele estava lá. Eu devia ter ido pro vestiário tomar um banho quente.

TL;DR: eu era ruim de bola, defendi uma bola impossível e virei herói.

Autor: Raphs

Fisicamente, três anos a menos. Mentalmente, sessenta anos a mais.

3 comentários em “O dia em que fui o primeiro.”

  1. 1) Meu Deus, post novo!
    2) Deu até pra ouvir o barulho da Pitchulinha batendo no chão quando você falou dela.
    3) O melhor jogador da minha turma também era Thiago.
    4) Eu também era (sou) ruinzão de bola mas defender na cagada é sempre algo a ser lembrado.

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  2. Acompanho o OJ há anos. Não sei pq gosto tanto de um blog que mal faz novos posts… kkkkkkk
    Daí sai um novo post repentinamente e eu me lembro o pq de continuar a checagem periódica. =)
    Tamo junto Raphs

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